Políticas públicas baseadas em dados

06 de março de 2024

Por Mariana Lombardi

O painel inaugural da DPGC 2023, ‘Políticas Públicas baseadas em dados’ trouxe  expressivos intelectuais da área das humanidades para uma importante reflexão, a partir  de uma robusta experiência acadêmica e profissional, a respeito do uso de dados na  construção políticas públicas pensando suas implicações, limitações, abrangências e  oportunidades futuras.  

O ponto de partida do painel foi a compreensão de que pensar políticas públicas é  pensar políticas de Estado que garantem direitos básicos. Essa movimentação do Estado  deve – ou deveria – ser fundamentada em dados. Nesse sentido, Thiago Amparo,  professor de direito internacional junto à Fundação Getúlio Vargas, concatena de maneira  objetiva: a importância dos dados é tornar visível um problema a ponto de ser digno de  tornar-se uma política. Sendo o Brasil uma referência mundial em dados naquilo que  tange à sistematização e sobretudo à disseminação.

Essa realidade, no entanto, não nos torna imunes a profundas dificuldades e discrepâncias informacionais, principalmente  quando encaramos a realidade de que não há um Brasil monolítico. Por isso Elena ressalta a importância da geração cidadã de dados – numa tentativa de engajar a população para  o conhecimento dessas diferentes realidades – projeto que ela desenvolve junto ao Data Labe. Em adição a essa perspectiva, o debate proposto por ambos os intelectuais teve  como eixo orientador a necessidade de que a pesquisa, manuseio de dados e por fim, a  construção de políticas públicas requer, obrigatoriamente, a interseccionalidade de raça,  classe e gênero. Estudar identidades é, sobretudo, estudar experiencias individuais, e  nesse sentido, os dados dão conta de revelar estruturas de discriminação contínuas que  escrutinam as estruturas econômicas, políticas e sociais – e, portanto, descortinam  desigualdades.  

À vista disso, a experiência profissional dos participantes compôs uma profunda  discussão – de maneira sempre complementar – sobre condução de pesquisas, suas  adversidades naquilo que tange a obtenção de dados e, o posterior, como manuseá-los de  maneira responsável. Pablo Nunes, a partir da sua experiência enquanto Coordenador do  Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, trouxe expressivas informações a respeito  do estado do Rio de Janeiro e suas profundas barreiras de acesso a dados principalmente  referentes à segurança pública. O cientista político, de maneira mais objetiva, salienta a  realidade de um estado que enfrenta profundos problemas relacionados à segurança  pública e que, paradoxalmente, não tem nenhuma política pública direcionada ao  enfrentamento do mesmo.  

A socióloga Sthefanie Lima, ao tratar do estudo desenvolvido em 2022 pelo  InternetLab – ‘Transformações, desafios e estratégias’ que analisa os 10 anos da Lei de  Cotas, notabiliza o fato de que a lei que significou um passo importantíssimo no acesso  às universidades é baseada em dados educacionais coletados ainda em 1987. A reflexão  proposta por Sthefanie se deslocou ao encontro de pensar os dados obtidos pela pesquisa  que revelam um cenário hostil, apesar da política de cotas, para a população negra naquilo  que tange a produção de conhecimento tecnológico por intelectuais negros.

Desse modo,  para Sthefanie, debater e driblar o epistemicídio significa defender direitos digitais como  direitos humanos fundamentais, mas também como reparação histórica. O trabalho de  Silvana Bahia, pesquisadora do grupo de Arte e Inteligência Artificial da USP e  participante do PretaLab vai ao encontro dessa problemática, dedicando-se a mapear as mulheres negras na tecnologia. Silvana é assertiva: sem dados não há problema, e,  portanto, não há política.  

Reflexionar a respeito da produção de dados para políticas públicas e,  posteriormente, gerados pelas políticas públicas significa obrigatoriamente refletir a  respeito de uma produção massiva de dados – sensíveis ou não – gerados para consumo,  mapeamento, políticas públicas, publicidade enfim, uma dataficação sobre todos os  aspectos da vida. Essa hipervisibilidade impõe a necessidade de uma análise atenta pelo  conjunto de pesquisadores sobre o risco da dataficação das políticas públicas. Dessa  forma, o questionamento mais importante a se fazer é: qual a responsabilidade do Estado  e seu papel de tutela a partir dos dados que ele coleta e manuseia? Quais as violências que  se reproduzirão a partir disso?  

Caso elucidativo dessa problemática são os dados gerados pelo Bolsa Família  obtidos pelo CADÚnico e os CRAS Municipais. Com certeza uma das mais robustas  políticas públicas do país e que coleta dados sensíveis de uma quantidade massiva de  cidadãos – sobretudo mulheres e crianças – deveria, por obrigação, estabelecer qual a  responsabilidade do Estado para com o manuseio e acesso desses dados. Não é a  realidade. De acordo Sthefanie Lima, nesse processo de repasse de verba esses dados são  praticamente públicos – uma vez que se trata de distribuição de dinheiro público.

A  socióloga ressalta a fragilidade na segurança dos dados dos beneficiários sob a  justificativa da transparência dos dados com pré-requisito de manutenção da política.  Voltando à necessidade de pensar políticas públicas e dados calcados dentro  interseccionalidade raça, classe e gênero. Ela evidencia uma discrepância entre o  desrespeito no tratamento e seguridade de dados de mulheres – sobretudo negras – dentro  da política pública do Bolsa Família e a experiência do auxílio emergencial durante a  pandemia do Covid-19. 

De início, tratou-se de uma política pública de dataficação cujos dados ficavam  restritos ao governo federal. Para ter acesso ao benefício, os cidadãos necessitavam acesso  a internet via computador ou aplicativo de celular, restringindo um celular por família. A  necessidade de cruzar dados a respeito de acesso à internet dá conta de evidenciar o  abismo intransponível existente entre uma política e outra naquilo que tange à seguridade  dos dados sensíveis dos beneficiários, pensando, obviamente, em um recorte de raça e classe. 

Por fim, ainda sob a perspectiva de debater produção de dados sensíveis a partir  das políticas públicas, o debate proposto pela mesa recaiu sobre a política implementada  em 2020 pelo Governo do Estado de São Paulo de colocar câmera nas fardas policiais.  Pablo Nunes, menciona que apesar de muito interessante, a experiência da PMSP não  encontrava paralelos globais e nacionais. Apesar dos dados em 2022 demonstrarem uma  queda de 22% na letalidade, esses números quando pensados em adição a outros fatores  causais, não imprimem a realidade. Para ele, as câmeras representam um simulacro de  política pública e não são uma resposta acabada ao problema da segurança pública. A  câmera registra, no entanto, evidencia o cientista político, qual o processo de governança  desses dados? Como serão lidos, armazenados? Quais as iniciativas federais de análise  das provas pelo ministério da justiça?  

Além disso, coloca Thiago Amparo, as câmeras são importantes instrumentos de  fiscalização e podem auxiliar em processos de accountability da PM sobre as condutas  policiais, em contrapartida, caem nas mãos de uma instituição marcada pelo  corporativismo. As propositivas dos pesquisadores se revelam campos importantes de  estudo para quem sabe, pensar uma política pública mais robusta ou, no limite, que  enfrente as fragilidades de uma política pública que tem sido alvo de discussão profundas  tanto por parte da academia tanto pela sociedade civil – e de desmonte do governo do  Estado de São Paulo sob a gestão Tarcísio de Freitas.  

Por fim, o painel com profissionais de diferentes áreas de pesquisa voltadas à implementação e estudo de políticas públicas, tornou possível a apreensão de maneira  introdutória mais muito enriquecedora, os desafios desde a formulação, planejamento e  execução de projetos e políticas públicas que lidam e geram dados de cidadãos dentro de  um debate que não estimule a tecnofobia e cujo fim último é a justiça social coexistindo com a crescente digitalização da vida e tudo que ela comporta. 

Mariana Lombardi foi uma das bolsistas da segunda edição da Data Privacy Global Conference. Como parte de seu compromisso como bolsista selecionada, ela teve a oportunidade de produzir um relatório ou outra forma de documentação escrita ou visual, destacando sua experiência e contribuição para a DPGC.